sábado, 1 de novembro de 2014

Gays, negros e eleitores de Dilma. Como é se sentir parte de uma minoria segregada em sua própria cidade

Ivan Martins, Revista Época

Na pracinha onde costumo caminhar, instalou-se a cizânia. O grupo de frequentadores que andava e conversava unido rachou em dois – um pedaço grande, outro pequeno. Terça-feira, uma conhecida minha fazia alongamento ao sol quando três amigas dela passaram, caminhando. Uma disse para a que se alongava: "Estou com pena de você". A resposta foi rápida e ríspida: "Pena de quê? Eu é que tenho pena de gente ignorante".

Adivinharam o motivo da discussão? Descobri no minuto seguinte.

Minha conhecida que se alongava votara em Dilma Rousseff. Agora, se sente hostilizada pelo resto da turma. "Minha família é de tucanos e não briguei com ninguém. Isso é um absurdo", ela me disse, entre brava e sentida. Outra amiga dela, também eleitora de Dilma, juntou-se à conversa para contar que conhecidos haviam lhe negado carona no dia anterior, porque ela votara no PT. Estava pasmada.

Minha impressão é que os paulistanos que votaram em Dilma experimentam hoje o que sentem os gays, os negros e os pobres: a sensação de ser discriminados, o medo permanente de ser vítimas de uma grosseria. É o sentimento das minorias.

Na cidade de São Paulo, os votos para presidente se dividiram em 64% para Aécio e 36% para Dilma. Em números absolutos: 4,1 milhões para o tucano; 2,3 milhões para a petista. Foi uma vitória acachapante. Ela produziu uma espécie de maioria moral na cidade, que às vezes fala alto e grosso. Petistas e simpatizantes se sentem intimidados.

Isso não significa que o mundo ao redor tenha se transformado num bloco hostil. A maioria continua civilizada. Mas há uma diferença. Diante de um eleitor declarado do PT, abre-se a possibilidade de que alguém fique agressivo. Na mesa do bar, no balcão da padaria, no elevador do prédio. Mesmo no Facebook. Essa possibilidade é inquietante. Modifica a forma como as pessoas se relacionam com o mundo.

Lembrei a canção "Like a rolling stone", de Bob Dylan: "Agora você não ri tão alto, agora você não parece tão orgulhoso/ Como é sentir-se assim"? Péssimo, eu diria. Se algo de bom existe nisso, é o aprendizado. Experimentar o que sentem os discriminados é instrutivo.

Você vai ao parque Villa-Lobos, vê um casal de garotas abraçadas, namorando, e pensa: que coragem! A qualquer momento, alguém pode dizer uma besteira. Mas elas estão lá, firmes. Provavelmente um pouco tensas. Agora dá para ter uma ideia - ainda que vaga - do que significa estar na pele delas. Assim como da família negra que entra no restaurante caro e todo mundo espia, estranhando. São estrangeiros? Ou do pobre que visita um prédio chique e precisa se submeter ao comportamento inquisitivo do porteiro. A qualquer momento, pode vir uma patada.

Outro dia, uma amiga foi à padaria com a estrelinha do PT no peito. O homem que cortava frios disse a ela: "Você vota como uma jumenta". Assim, do nada, para a mais gentil das criaturas. Num prédio da velha classe média, um senhor se incomodou com adesivos de Aécio colados na parede do elevador, fez uma queixa, e o sindico ouviu do propagandista de interiores: "Quem foi o comunista f.d.p. que reclamou"? Ele achou melhor não revelar. Como os dois episódios são anteriores à votação, torço para que os protagonistas tenham voltado à sanidade.

Alguém dirá que eleitores de classe média do PT não podem ser comparados a quem vive todo dia a experiência do preconceito. Um xingamento ocasional não é o mesmo que a sensação de vulnerabilidade permanente. É provável também que eleitores de Aécio sofram discriminação equivalente em ambientes onde eleitores de Dilma são maioria. Essas objeções estão corretas, mas não mudam um fato: o clima em São Paulo segue tenso; e os petistas, em menor número, estão pouco à vontade.

Como detesto essa atmosfera de conflito, torço para que a vida volte ao normal rapidamente. Na minha praça e na minha cidade. Em toda parte, na verdade. O discurso de ódio precisa ser posto de lado. Todos queremos um país engajado na política e gente disposta a debater ideias e visões sobre o Brasil. Vigorosamente, se for o caso. Mas isso não significa segregar, ofender, muito menos agredir quem pensa de forma diferente. Talvez, de agora em diante, tenhamos de conviver com discordâncias que andavam camufladas e vieram à tona nas eleições. O importante é fazer isso com urbanidade. A cordialidade brasileira pode ser apenas um mito, mas é daqueles que merecem ser cultivados. A alternativa seria terrível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário